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A teoria da evolução é uma teoria científica? A evolução da vida é real?

Como qualquer teoria científica em ciências naturais, a teoria da evolução explica um ou mais aspetos-chave do mundo natural, neste caso, uma vasta soma de observações que passam pela emergência e diversificação da vida, pelo registo fóssil, pela variação intrínseca das populações biológicas ou pela adaptação dos seres vivos ao seu nicho ecológico. A teoria da evolução está para a biologia o que a tectónica de placas está para a geologia: é uma teoria unificadora, de cúpula, da qual irradiam hipóteses explicativas para todos os domínios da biologia. É um princípio científico maior, exclusivo da biologia, que eleva esta ciência ao nível da química e da física na sua capacidade de explicar o mundo natural.

A natureza científica da teoria da evolução tem sido questionada em certos círculos, a ponto de o seu ensino ao nível de não graduado merecer uma oposição crescente em países tão relevantes no sistema científico global como os EUA. A questão «Será a teoria da evolução uma teoria científica?», além de se dirigir às fundações da biologia moderna, tem profundas implicações filosóficas e condiciona a atitude da sociedade para com a ciência.

Em ciência – talvez menos nos meios filosóficos –, a demarcação das teorias científicas é feita através da aplicação do critério da refutabilidade ou da falseabilidade (criterion of falsifiability, popperian criterion), originalmente proposto pelo filósofo inglês de origem austríaca Karl Popper (1902-1994), no livro seminal The Logic of Scientific Discovery (K. R. Popper, 1959). De acordo com este critério, as teorias (e as hipóteses) científicas distinguem-se das teorias não científicas por gerarem predições testáveis por métodos observacionais. Para Popper, uma teoria científica tem dois destinos possíveis: i) a falsificação e a concomitante rejeição; ii) a corroboração incremental pela evidência observacional, sendo, então, aceite sob reserva. Uma teoria nasce da observação e é testada – corroborada ou rejeitada – pela observação. Na argumentação de Popper, a categoria de teoria verdadeira é inatingível e a ciência, por natureza, uma atividade humana falível e inacabada.

O melhor roteiro de refutação da teoria da evolução foi proposto pelo próprio Darwin: «Se fosse demonstrado que existiu um qualquer órgão complexo, que não pudesse ter sido formado por numerosas e sucessivas pequenas modificações, então a minha teoria seria completamente desacreditada» (Darwin, 1859). Outro desafio radical à teoria da evolução consistiria na deteção de uma inversão das sequências evolutivas, por exemplo, com o achado de impressões fósseis de plantas com flor em sedimentos do Ordovícico, ou da maxila de um hominídeo na mesma camada estratigráfica de um Tyrannosaurus rex; o que nunca aconteceu.

E o falsificacionismo já atuou na teoria da evolução, como é próprio de qualquer teoria ou hipótese científica! O neodarwinismo é uma reformulação da teoria darwiniana da evolução consequente da falsificação da soft inheritance por August Weismann (v.s.). As hipóteses fundamentais que constituem a teoria da evolução têm sido corroboradas por um acervo cada vez mais vasto de observações, e as suas predições limitadas, é certo, pela natureza do objeto, continuam a resistir aos mais ácidos testes experimentais e aos mais meticulosos métodos de análise de dados da biologia moderna. As premissas fundamentais da teoria da evolução, resumidas na expressão darwiniana da descendência com modificações através da seleção natural, nunca foram refutadas. A teoria da evolução darwiniana é inquestionavelmente uma teoria científica, eminentemente verdadeira, consensual nos meios da biologia.

A consensualidade é, frequentemente, mal interpretada nos meios não científicos. Assim acontece com a teoria da evolução ou com a hipótese do aquecimento global, por exemplo. Consensualidade não é o mesmo que unanimidade. Uma determinada teoria ou hipótese é consensual quando é considerada correta pela grande maioria dos especialistas, e essa conclusão resulta de múltiplas linhas de evidência produzidas por grupos independentes de investigadores. Não é necessário haver unanimidade para haver consenso, nem é suposto que assim seja em ciência. A falta de unanimidade não diminui a bondade de uma teoria ou hipótese.

Outro equívoco equivalente sucede com o termo «teoria» (Dawkins, 2009). Teoria, em linguagem corrente, refere-se a algo incerto, pouco claro, vago. Em ciência, a teoria está acima da lei ou da hipótese. Uma teoria científica é uma explicação extensamente corroborada de um aspeto particular do mundo natural. A teoria da evolução e as teorias da gravidade ou da relatividade, por exemplo, ombreiam na dimensão do seu suporte teórico e empírico. Quando um cientista usa a designação «teoria da evolução» não pretende expressar hesitação ou incerteza em torno da explicação darwiniana da evolução, bem pelo contrário.

Muitos, como o jurista português Boaventura Sousa Santos (Sousa Santos, 2010), argumentam que o darwinismo (e toda a ciência) é apenas mais um mito, não muito diferente da crença nos deuses do panteão romano, por exemplo. Esta equivalência além de perigosa não tem sentido. Ceres, a deusa romana da agricultura (Figura 15), existiu apenas na imaginação coletiva dos seus devotos. As oferendas anuais no grande festival da Cerealia não resolveram o défice crónico de azoto e a baixa produtividade da agricultura pré-industrial. Nem foi Ceres quem domesticou o trigo-espelta, como relata o mito. Em contrapartida, a invenção da síntese química da amónia a partir do N2 atmosférico por Fritz Haber em 1908 alimentou milhões, e explica o crescimento explosivo da população mundial no século XX (Smil, 2001a). As teorias científicas não são fantasias. Há qualquer coisa de real – uma verdade universal – exterior à nossa mente que a ciência descreve com grande aproximação, ao ponto de se ter convertido no instrumento mais precioso e poderoso da ação do Homem sobre a natureza. A teoria da evolução partilha desta propriedade. Ceres é uma realidade subjetiva, enquanto a evolução e a força da gravidade são realidades objetivas, portanto, a religião e a ciência, embora partilhem o facto de serem construções da mente humana, não oferecem explicações comparáveis nem conciliáveis para a forma como funciona o mundo. Aliás, nem sequer têm a mesma função. A religião é, essencialmente, um veículo de preservação da ordem social e de organização da cooperação em larga escala (Culotta, 2009). O principal objetivo da ciência é produzir conhecimento ... científico.

A corroboração empírica da teoria da evolução é vasta em biologia aplicada. Muitas decisões práticas do dia a dia do biólogo aplicado, do agrónomo ou do silvicultor não envolvem pensamento evolutivo, nem uma compreensão da história evolutiva das plantas e dos animais. As narrativas evolutivas, pelo contrário, são inevitáveis quando é necessário trabalhar com a diversidade biológica (a várias escalas) e compreender as evidências de adaptação e as diferenças anatómicas, fisiológicas e ecológicas entre taxa. O melhoramento de plantas e animais, e a gestão de resistências a pesticidas ou de invasões biológicas envolvem a aplicação sistemática de princípios de evolução.

Os cientistas e os não cientistas são livres de propor explicações alternativas ao formidável corpo de observações e hipóteses acumulado nos últimos 150 anos em prol da teoria da evolução. Mas em ciência ninguém escapa à tirania dos factos: quem desafia uma hipótese ou uma teoria tem de provar que os dados que as sustentam estão errados ou propor explanações alternativas plausíveis, que compreendam toda a evidência disponível. A rejeição em definitivo de uma teoria depende do escrupuloso cumprimento de uma destas duas condições. Um ato único, irrepetido, de criação é a alternativa mais difundida à teoria da evolução para explicar por que razão as formas de vida que povoam a Terra são tão variadas e morfológica e funcionalmente ajustadas (v. «Teoria da evolução de Darwin»). O criacionismo não é uma teoria científica porque não é falsificável (exemplo na Figura 16): acomoda todas as observações do mundo natural na vontade de um criador e não produz predições testáveis. «Na ideia comum de que cada espécie foi criada de forma independente, não ganhamos nenhuma explicação científica» (Darwin, 1868).

A concordância com a teoria da evolução (e a rejeição do criacionismo) implica, necessariamente, uma adesão ao naturalismo filosófico: a aceitação de que a realidade é governada, em exclusivo, por propriedades e causas naturais. Reside aqui o porquê da atual contestação à teoria da evolução, contestação que, a propagar-se a outros domínios da ciência, empurraria as sociedades modernas para uma nova idade das trevas. Ensinar e aprender evolução é, em simultâneo, a chave mestra para compreender o mundo vivo – como diz Dobzhansky, “nada em biologia faz sentido exceto à luz da evolução” (Dobzhansky, 1973) – e um ato de resistência contra o obscurantismo e a barbárie. No livro Why Evolution Is True, (J. Coyne, 2010) oferece um formidável e eclético rol de evidências de que os seres vivos evoluíram, estão a evoluir e continuarão a evoluir, que se estende desde a escala das moléculas guardiãs da informação genética (ARN e ADN), objeto da biologia molecular, aos restos fósseis investigados pela paleontologia. Transcrevo uma única frase que de algum modo condensa a argumentação de Jerry Coyne: «A evolução da vida é um facto.»