O porquê do ensino da botânica nas licenciaturas em ciências agrárias
As plantas são produtores primários e, nessa condição, os organismos responsáveis pela introdução da vasta maioria da matéria e da energia que circula nos ecossistemas naturais, seminaturais e cultivados. As angiospérmicas representam mais de 89% da produtividade dos ecossistemas terrestres (inc. agroecossistemas) – e são o sustento da diversidade da terra emersa, ca. 85% da diversidade biológica que povoa o planeta (Benton et al., 2022; Lee & Choi, 2020). Direta, ou indiretamente por via animal, as populações humanas alimentam-se de angiospérmicas (Delaney & von Wettberg, 2023). O amido, por si só, fornece cerca de 50% das calorias consumidas pelos humanos (Zhu et al., 2023).
Os dicionários de etimologia (v. https://www.etymonline.com) esclarecem que a palavra agronomia tem raízes gregas – deriva de agros (campo, quinta) e nomos (costume, administração). Num sentido lato, tal qual é frequentemente usada em Portugal, inclui a ciência animal. A silvicultura, outra ciência agrária como a agronomia, deve a sua designação aos termos latinos silva (floresta) e cultura (cultivo, agricultura). A componente fitotécnica da agronomia s.l. e da silvicultura, enquanto ciências e técnicas da agricultura e da floresta, é, na génese e na essência, uma especialidade da botânica aplicada, auxiliada por outras disciplinas técnico-científicas necessárias para o adequado acompanhamento e maneio da germinação, emergência, abrolhamento, crescimento e diferenciação, reprodução e, eventualmente, da senescência vegetal. Por conseguinte, se as boas práticas agronómicas e silvícolas dependem do saber botânico, então o conhecimento/perceção da diversidade, da estrutura e do funcionamento das plantas tem um papel-chave na formação do agrónomo, do zootécnico e do silvicultor.
Num ensaio na revista Science, velho de um século no passado ano de 2024, todavia atual, sobre as relações entre a botânica e agricultura, William Trelease – um erudito botânico estadunidense a quem foi dedicado o folhado-dos-açores, Viburnum treleasi – resume o seguinte sobre a importância da botânica no ensino agrícola: «Tal como a agronomia [s.str.], todas estas especialidades [ciências florestais e horticultura] assentam num conhecimento da estrutura, do trabalho e das relações ambientais das plantas, em conformidade com as leis da ciência da botânica e que, sob qualquer nome, foram desenvolvidas por botânicos» (Trelease, 1924). Mais, «Se eu resumisse em termos gerais as relações da botânica com a agricultura a nível graduado, devo dizer que, quer se chame genética ou agronomia, todas as etapas fundamentais do melhoramento das plantas são botânica; quer se designe floricultura ou olericultura, o reconhecimento de mutações e toda a seleção baseada nelas é botânica; seja no combate às infestantes, na agronomia, nas plantações para madeira, na silvicultura, todos os procedimentos ecologicamente fundamentados são botânica; na prática da profilaxia ou da quarentena, no desenvolvimento de raças resistentes, em cada passo do combate às doenças das plantas é aplicada a botânica; e até a escolha da estação mais favorável para podar, a seleção de sementes maduras e a utilização apropriada das que ainda não o estão, – tudo repousa na descoberta botânica trazida – sob qualquer nome que se prefira – pela investigação botânica.» Importa ainda relevar que nos tempos de Trelease, os impactes da agricultura e da silvicultura no ambiente, o papel da diversidade vegetal e, implicitamente, do seu conhecimento, na construção e no funcionamento dos agroecossistemas e na conservação da biodiversidade não tinham a relevância social que têm hoje.
O ensino da botânica está em decadência à escala global (Hershey, 1996; Stroud et al., 2022). Não existe um estudo diacrónico sobre a decadência do ensino da ciência botânica em Portugal. Importantes indícios emergem da comparação dos Atlas de Botânica do agrónomo-botânico António Xavier Pereira Coutinho [1851-1939] (Coutinho, 1898), para uso em vários graus de ensino, com a exiguidade da botânica nos atuais curricula liceais. Numa leitura, não sistemática, que fiz dos curricula e dos livros de texto de biologia do ensino não universitário, para além da pobreza curricular, da desatualização científica e da incapacidade de identificar um core de conhecimentos essenciais de botânica, encontrei erros e inconsistências conceptuais – por exemplo os conceitos de carpelo e de pistilo são sistematicamente confundidos [uma pequena contribuição pessoal para a melhoria deste panorama pode ser encontrada em Aguiar (2023)]. No país que viu nascer W. Trelease, a perda de importância do ensino da botânica a nível universitário e não universitário é evidente desde o início do séc. XX (Hershey, 1996). Na primeira década do séc. XX na maioria das escolas secundárias dos EUA a botânica era lecionada durante meio ano a um ano. Na década de 1920, Trelease já então se queixava do declínio da botânica no ensino secundário, e da perda frente à zoologia.
A evidência mais dramática da desvalorização da botânica encontramo-la, talvez, no uso coloquial da língua. A linguagem, além de ser um instrumento de comunicação, estrutura a perceção humana da realidade (Stettiner, 2013). Assim é com as palavras «botânica» ou «planta» que ganharam uma conotação negativa que vai muito para além do seu significado (Crisci et al., 2020). A inclusão dos termos «planta» ou «agricultura» na designação das formações universitárias tem, hoje, um efeito negativo na procura formativa, ao arrepio da crescente importância social e económica das plantas (Stagg et al., 2009).
Genericamente, o cidadão comum não individualiza as plantas no fundo da vegetação e, com frequência, nem sequer reconhece as plantas como seres vivos (Sanders et al., 2015). Inquéritos dedicados mostram que os estudantes pré-universitários, embora educados em biologia, têm um conhecimento muito limitado sobre a forma como as plantas crescem e se reproduzem e quais as suas exigências ecológicas (Pany et al., 2019). Constato também que os alunos mais interessados estão, frequentemente, influenciados por leituras acríticas de obras de divulgação botânica de forte cunho metafórico – mas sem dúvida de grande valor pedagógico e científico –, como é o caso dos livros de Mancuso (2019) e de Wohlleben (2016). A falta de cultura botânica mereceu a cunhagem da locução «cegueira botânica» e do termo «zoochauvinismo» (Burke et al., 2022; Wandersee & Schussler, 1999). A cegueira botânica refere-se à falta de literacia botânica (saber botânico), à maior dificuldade para identificar as plantas do que os animais, à tendência para considerar mais interessantes e atrativos os animais do que as plantas, e à desvalorização das plantas nos curricula de ensino. Entende-se por zoochauvinismo a tendência para usar os animais como exemplos.
A razão de ser da erosão do interesse coletivo e individual pelas plantas e a decadência do ensino e da literacia botânica, isto é, da cegueira botânica, é multifatorial, com causas culturais e outras eminentemente inatas. Gordon E. Uno, o coordenador do projeto norte-americano IGELS (Improvement of General Education Life Science courses,https://projectigels.org), insiste que o estudo das plantas é seriamente prejudicado pela escassa exposição ao mundo vegetal na escola formal, e pela indiferença e pelas dificuldades crescentes de concentração dos estudantes, cada vez mais dependentes de interações sociais superficiais, e de realidades imediatas e gratificações instantâneas oferecidas pelas redes sociais (Uno, 2009). Estudos diversos mostram que a exposição precoce à natureza é essencial para desenvolver o gosto e laços com o vivo. A urbanização da sociedade, com a interação direta com as plantas através da atividade agrícola relegada a um número cada vez menor de ativos, revela os seus efeitos também na botânica (Farmer et al., 2007; Zaradic et al., 2009). Foi demonstrado que os estudantes de origem rural são mais competentes em distinguir as plantas do que os de origem urbana (Pilgrim et al., 2007). De facto, o período de atenção (attention span) – o intervalo tempo em que um indivíduo se empenha numa dada tarefa – está em acelerado declínio nos jovens (Simon et al., 2023). Há uma preocupação crescente com a apatia (falta de motivação ou interesse pela aprendizagem) dos estudantes nos diversos graus de ensino, sustentada num corpo cada vez mais vasto de validação empírica com metodologias objetivas e replicáveis de avaliação (Ang et al., 2017; Cardon, 2014; Chipchase et al., 2017). Como se não bastasse, o saber botânico também está a decair na classe dos professores (Stroud et al., 2022). Uma outra causa da decadência da botânica de obvia raiz cultural reside na maior proximidade da zoologia com as ciências da saúde, uma área formativa de procura crescente.
«[...] temos de encarar o facto de que a nossa própria história natural, morfologia, anatomia, fisiologia e patologia se destacam com particular ênfase na mente quando estas palavras são mencionadas [...]» (Trelease, 1924). W. Trelease admite, com os conceitos e termos do seu tempo, que há uma causa filogenética – implicitamente inata – no enviesamento da atenção dos estudantes e professores, e da sociedade no seu todo, em favor da zoologia. As linhagens que deram origem às plantas e animais atuais divergem há ca. 2.100 M.a., desde o momento em que a cianobactéria ancestral de todos os cloroplastos ficou retida e se reproduziu no interior da alga primordial (Sánchez-Baracaldo et al., 2017). Enquanto os animais prosseguiram na senda da heterotrofia herdada do último ancestral comum aos dois clados, as plantas exploraram as oportunidades evolutivas abertas pela autotrofia. Estão em causa duas formas antitéticas de obter energia e nutrientes que, evolutivamente, se traduziram numa ontogénese, estrutura e função do corpo distintas. Por exemplo, as plantas-com-semente integram três entidades biológicas com dois níveis de ploidia, sem equivalente no reino animal – o esporófito e os gametófitos feminino e masculino – que no início do Devónico eram autotróficas e independentes: as plantas são uma estranha trindade para o aluno comum de botânica. Por conseguinte, o modelo humano de corpo, o que melhor conhecemos, é tanto mais útil para compreender outros seres quanto maior a sua proximidade filogenética; como ponto de partida para o estudo das plantas, é inútil. Wandersee & Schussler (1999) são mais explícitos na exploração das bases biológicas da cegueira botânica, admitindo que a cor uniforme, a imobilidade ou a ausência de um rosto nas plantas influenciam negativamente o processamento da informação visual no cérebro humano. A componente inata da cegueira pelas plantas foi, entretanto, confirmada experimentalmente (Balas & Momsen, 2014).
Em suma, a botânica é uma ciência fundamental com um fortíssimo potencial aplicado, que está a evoluir rapidamente e que tem um papel determinante para compreender a vida e, implicitamente, as atividades agrícolas e florestais. Os futuros agrónomos, zootécnicos e florestais precisam da botânica para a tomada de decisões em contexto de trabalho. Porém, o estudo das plantas é cerceado por um viés (bias) cognitivo endógeno da mente humana (desapego inerente pelas plantas), pela insuficiente qualidade do ensino da biologia, pela exposição limitada às plantas no ensino pré-universitário, pelo crescente desinteresse da classe estudantil em aprender e pelas dificuldades crescentes de concentração, enfim, pela cegueira botânica generalizada. Os cidadãos atuais, incluindo os estudantes do ensino superior, em seu prejuízo, não compreendem a importância das plantas no funcionamento da biosfera e das sociedades humanas (Bradbury, 2016; Uno, 2009). A subvalorização da botânica nos curricula de ciências agrárias, insisto, é contraproducente, incompatível com uma sólida formação técnico-científica, com um entendimento/consciência do que é a agricultura e a silvicultura que a sociedade precisa e deseja.
Para reforçar a argumentação transcrevo o que escrevi em 2020 no ponto «Breve reflexão epistemológica», no livro «Estrutura e Biologia das Plantas» (Aguiar, 2020a): «É impossível desenhar sistemas de produção agrícola ou florestal sustentáveis ou programas de conservação de espécies e ecossistemas – um propósito incontornável das sociedades contemporâneas – sem um conhecimento íntimo das plantas [...]. Compreender para assim ganhar competências é uma das características dos modernos sistemas de ensino-aprendizagem.»