Noções introdutórias
A descoberta da sexualidade nas plantas
A sexualidade das plantas foi reconhecida, pela primeira vez, pelo médico Rudolf Camerarius (1665-1721), em 1694, num livro intitulado De Sexu Plantarum Epistola, onde provou que os estames e os pistilos das flores são essenciais na reprodução por semente. A aceitação definitiva no meio científico de que as plantas são seres sexuados demorou mais um século, até às experiências de hibridação de um outro cientista de língua alemã, o botânico Karl Friedrich von Gaertner (1772-1850) (Vogel, 1996). O processo da reprodução sexual só foi devidamente compreendido após a descoberta da meiose pelo zoólogo belga Édouard van Beneden (1846 -1910), em 1883, e da duplicação do número de cromossomas no esporófito (por oposição ao gametófito) pelo botânico francês Léon Guignard (1852-1928), em 1885 (Qiu et al., 2012).
Meiose e fecundação
A reprodução sexuada implica duas células especializadas – os gâmetas ♂ e ♀ – provenientes de um mesmo indivíduo nas espécies monoicas, ou de dois indivíduos distintos, um ♂ e outro ♀, nas espécies dioicas. A reprodução assexuada ocorre sem fecundação e envolve a produção de sementes apomíticas ou partes vegetativas de um único indivíduo (e.g., fragmentos de raízes, caules e folhas) (v. «Reprodução assexuada»).
Na reprodução sexuada alternam dois eventos celulares fundamentais, consoante os grupos taxonómicos mais ou menos afastados no tempo: a (i) meiose e a (ii) fecundação. A meiose é um processo celular durante o qual uma célula parental diploide (com 2n cromossomas) origina, geralmente, quatro células haploides (com n cromossomas), através de duas divisões celulares sequenciais: (i) reducional e (ii) equacional. Durante a primeira divisão celular – a divisão reducional – dá-se uma redução para metade do número de cromossomas. Nas plantas terrestres, após a divisão equacional, diferenciam-se, de imediato, esporos. Por serem originários de meiose, estes esporos são conhecidos por meiósporos.
A fecundação é um processo celular simétrico da meiose: envolve a fusão de duas células sexuais haploides (gâmetas ♂ e ♀), restabelecendo a diploidia com a formação de um zigoto. Nas ‘plantas de esporulação livre’ e na maioria das gimnospérmicas, i.e., nos grupos mais antigos de plantas terrestres, a meiose e a fecundação estão afastadas no tempo; nas plantas com flor, o intervalo entre a meiose e a fecundação é relativamente curto. Contudo, a fecundação é particularmente complexa nas plantas com flor porque envolve, como veremos, dois gâmetas ♂, dois gâmetas ♀ e dois eventos de cariogamia (fusão do genoma).
As plantas terrestres partilham um ciclo de vida haplodiplonte, adquirido quando invadiram a terra firma no final do Câmbrico/início do Ordovícico. Nos seres haplodiplontes alternam duas gerações distintas designadas por gametófito e esporófito (v. «Ciclos de vida das ‘plantas de esporulação livre’»). O gametófito é haploide (n) e produz gâmetas (n) por mitose; o esporófito é diploide (2n) e origina esporos haploides (n) por meiose (Figura 316-C).
Etapas da reprodução sexual
A reprodução sexual nas plantas terrestres comporta cinco grandes processos:
- Esporogénese;
- Gametogénese;
- Movimento dos gâmetas ♂;
- Fecundação;
- Embriogénese.
Os esporos são produzidos em esporângios e os gâmetas em gametângios. Nas plantas com semente, além dos esporângios e dos gametângios estarem profundamente modificados, ocorrem três estruturas únicas: o (i) pólen, o (ii) primórdio seminal e a (iii) semente. Consequentemente, entre outros, os processos (i) indução e iniciação das estruturas reprodutivas específicas do grupo, (ii) polinização, (iii) germinação e crescimento do tubo polínico e (vi) diferenciação da semente são exclusivos deste grupo avançado de plantas terrestres. E só as angiospérmicas diferenciam flores e frutos.
Este capítulo é dedicado à reprodução sexual nas angiospérmicas. O estudo da sexualidade das ‘plantas de esporulação livre’ e das gimnospérmicas fica adiado para o capítulo v. «Ciclos floral e reprodutivo das angiospérmicas».
O porquê da sexualidade
A reprodução sexual é uma característica ancestral comum a todos os eucariotas – uma plesiomorfia na terminologia cladística (Lane, 2015). A informação genética, a maquinaria bioquímica e as estruturas envolvidas na sexualidade são de uma complexidade extrema, e «caras» em matéria e energia. Nas espécies alogâmicas – a maior parte das plantas com flor –, para que o encontro dos sexos tenha sucesso, têm de coincidir no tempo condições ambientais adequadas para a diferenciação das estruturas sexuais, a libertação de pólen (ântese), a maturação dos primórdios seminais e a presença de agentes polinizadores. E, antes de tudo o mais, é essencial que os gâmetas sejam viáveis. Seguem-se etapas igualmente exigentes como a fecundação e a diferenciação e maturação da semente e do fruto. Quando algo corre mal, os indivíduos produzem menos sementes ou falham a reprodução.
A sexualidade consome vastos recursos e envolve tremendos riscos, ainda assim 99% das plantas e dos animais reproduzem-se sexuadamente em algum momento do seu ciclo de vida – o sexo é um paradoxo (Hartfield & Keightley, 2012). A evolução e a generalização da reprodução sexual nos eucariotas é, por conseguinte, uma das questões de investigação fundamental da biologia evolutiva contemporânea. A justificação evolutiva da sexualidade tem como ponto de partida a constatação de que a vida coloniza um mundo ambientalmente heterogéneo e em permanente mudança. Consequentemente, a capacidade de mudar, de evoluir, é um pressuposto para a sobrevivência de qualquer linhagem de organismos. Sem variação genética, não há evolução – a variação genética é a «matéria-prima» da evolução. De acordo com a hipótese da variação e seleção (variation and selection hypotheses), a sexualidade evoluiu (uma única vez) a partir de organismos assexuais, persistiu e disseminou-se porque incrementa a variação genética e, por essa via, as taxas evolutivas e o sucesso evolutivo dos organismos portadores (Kondrashov, 1993). A capacidade de evoluir é uma característica extraordinariamente vantajosa – portanto, a sexualidade é adaptativa. Como a sexualidade aumenta a variação genética é uma questão a abordar no volume II.
O argumento da variação genética é, porém, insuficiente para explicar a opção pela sexualidade nas plantas porque a combinação de elevados níveis de poliploidia com a reprodução assexual – um mecanismo inexistente nos animais – basta para o efeito (Hörandl, 2024). A explicação da prevalência da sexualidade nas plantas reside, também, nos mecanismos de reparação do DNA associados à meiose que não cabe aqui descrever. No longo prazo, a reprodução assexuada, além de deprimir a aquisição de variação, desemboca numa decadência genética devido à acumulação irreversível de mutações deletérias – fenómeno conhecido por catástrofe mutacional ou mülleriana – com maior intensidade em pequenas populações, conduzindo à extinção das linhagens assexuadas (Hörandl, 2024).