Teorias da evolução
Teoria da evolução de Darwin
Durante a viagem de circum-navegação a bordo do navio Beagle (27 de dezembro 1831-2 de outubro de 1836), na dupla função de naturalista e de companheiro de viagem do comandante do navio, o capitão FitzRoy, Darwin, na altura um jovem naturalista em busca de um rumo na carreira e na vida, confrontou-se com duas questões fundamentais que absorviam a atenção dos seus contemporâneos (Pigliucci, 2007):
- Como explicar e qual a história da diversidade biológica que povoa o planeta?
- Por que razão a forma e a função, a flor e a polinização, por exemplo, estão tão estreitamente correlacionadas nos seres vivos?
O afastamento do essencialismo e a aproximação à ideia de evolução, na procura de resposta a estas duas questões fundamentais da biologia, tiveram como ponto de partida o uniformitarismo popularizado pelo geólogo e amigo pessoal de Darwin, Charles Lyell (1797-1875). Lyell é um dos fundadores da geologia moderna e o autor de um importante livro, Principles of Geology, que Darwin leu avidamente durante a viagem do Beagle (Allen, 2014). Para explicar as características geológicas da Terra, Lyell admitiu que estas se deviam à lenta ação de forças ainda hoje atuantes – «o presente é a chave para [entender] o passado», uma ideia simples, mas de grande alcance, cunhada por uniformitarismo (uniformitarianism).
O Beagle deteve-se três anos na América do Sul. No outono de 1835, a cerca de 1.000 km da costa continental sul-americana, nas ilhas do arquipélago dos Galápagos, Darwin deparou-se com várias espécies de aves pertencentes ao género Mimus, de notável semelhança morfológica, quer entre si quer com outras espécies continentais. Regressado a Inglaterra, escreveu em 1836 no seu diário: «Se existe o menor fundamento para essas observações, a zoologia dos arquipélagos será digna de análise; pois tais factos [minariam] a estabilidade das espécies.» Cautelosamente, Darwin considera a hipótese de que espécies tão similares como aquelas descendiam, provavelmente, de um ancestral comum, de origem continental – admite, assim, pela primeira vez que a diversidade biológica não era satisfatoriamente explicada através de um ato único de criação de seres imutáveis (v. Costa, 2009).
Darwin encontrou no seio de cada espécie diferenças morfológicas entre indivíduos. Talvez algumas variações conferissem vantagens na luta por recursos limitados e influíssem no sucesso reprodutivo dos indivíduos que as possuíssem. E a acumulação de características (traits) favoráveis ao longo do tempo poderia explicar a divergência morfológica e o aparecimento de novas espécies. Os fósseis de mamíferos extintos, similares às espécies atuais, que Darwin encontrou nas costas da América do Sul, seriam então elos de uma longa cadeia evolutiva. O seu estudo forneceria não só a evidência da evolução, mas também a possibilidade de reconstruir a história evolutiva dos seres vivos atuais.
O fermento do evolucionismo darwiniano é, porém, anterior à viagem de circum-navegação do Beagle. Entre 1828 e 1831, Darwin foi aluno e usufruiu da amizade de John Henslow (1796-1861), um padre anglicano e um rigoroso investigador da natureza das espécies vegetais e da variação das suas formas. Nas visitas de campo organizadas por este distinto mineralogista e professor de botânica, Darwin aprendeu a colher espécimes botânicos e a observar a variação da forma das plantas. Os seus biógrafos admitem que estas aprendizagens, a par da sua experiência como naturalista na viagem do Beagle (por recomendação de J. Henslow), foram essenciais no processo de aceitação da ideia de evolução e na descoberta do mecanismo da seleção natural (Kohn et al., 2005).
Depois de chegar da viagem do Beagle, Darwin viveu duas outras experiências determinantes no processo de conceção da teoria de evolução por seleção natural: (i) a observação dos métodos de seleção artificial de novas variedades de espécies domésticas, e a (ii) leitura do livro An Essay on the Principle of Population, de Thomas Malthus.
Darwin estudou com minúcia as técnicas usadas por columbófilos e criadores de gado para obter novas raças de animais domésticos, muitas vezes com características exuberantes, através da seleção artificial (artificial selection) da variação biológica intrínseca de cada espécie. Ele próprio dedicou-se a selecionar cruzamentos com raças de pombos domésticos. A analogia entre a seleção artificial de raças domésticas e a seleção natural viria a ser um argumento crucial em A Origem das Espécies (Theunissen, 2012).
Thomas Malthus (1766-1834) foi um clérigo anglicano e demógrafo inglês conhecido por defender que as populações humanas crescem mais rapidamente do que a disponibilidade de recursos. Para Malthus, a escassez era uma inevitabilidade comum a todas as sociedades humanas e a causa eficiente da guerra, da fome e das epidemias. Malthus percebeu que nas sociedades humanas pré-industriais – os efeitos da Revolução Industrial eram ainda incipientes no seu tempo – as taxas de natalidade e de mortalidade tendem a igualar-se e que o rendimento, assim como o número de filhos sobreviventes por mulher, sofreu poucas variações ao longo do tempo (G. Clark, 2007). Darwin encontrou em Malthus a noção de luta pela sobrevivência (struggle for existence) que adotaria, numa versão menos radical na sua teoria da evolução (Malthus valorizou mais a competição por recursos escassos do que Darwin).
Entre a primeira assunção por escrito de que as espécies mudam, antes referida, e a publicação de A Origem das Espécies decorreram 23 anos. A ideia de evolução era demasiado revolucionária para um homem com uma personalidade temperada, avesso à exposição pública. Darwin começou, finalmente, a escrever A Origem das Espécies em 1856, pressionado por Charles Lyell e pela publicação em 1855 de um artigo por outro importante naturalista britânico, Alfred Russel Wallace (1823-1913), na altura a trabalhar na distante ilha do Bornéu (Figura 3CI.1.3-C)). Wallace era um convicto evolucionista – convergiu com todo o mérito, e de forma independente, num mecanismo evolutivo por seleção natural similar ao de Darwin (J. T. Costa, 2009).
Figura I.1.3. Seis personagens-chave da história do pensamento evolutivo em biologia. A) Jean-Baptist de Monet (Cavaleiro de Lamarck) (1744-1829), B) Charles Darwin (1809–1882), C) Alfred Russel Wallace (1823-1913), D) August Weismann (1834-1914),
E) Ernst Mayr (1904-2005) e F) William Hamilton (1936-2000). [A-E) Wikimedia Commons, F) extraída de Grafen (2004).]
A teoria da evolução por seleção natural foi originalmente proposta, num artigo conjunto de Wallace e de Darwin, em 1858. Ao contrário de Wallace, Darwin conseguiu coligir e publicar um grande número de factos a suportar a teoria da evolução por seleção natural. As 1250 cópias da primeira edição, datada de 1859, de A Origem das Espécies esgotaram imediatamente. O impacto nos meios cultos europeus e norte-americanos foi tremendo. Influentes cientistas, como os botânicos William Hooker (1785-1865) e Asa Gray (1810-1888) ou os zoólogos August Weismann (1834-1914) e Ernst Haeckel (1834-1919), aderiram entusiasticamente às ideias de Darwin. Em contrapartida, os seus detratores não hesitaram em apelidá-lo como «o homem mais perigoso de Inglaterra».
Da teoria da evolução de Darwin, teoria da evolução de Darwin-Wallace ou teoria da evolução por seleção natural extraem-se seis ideias fundamentais (J. Coyne, 2010):
- A ideia de evolução em si;
- O gradualismo do processo evolutivo;
- A especiação como consequência frequente da evolução;
- A conexão de todos os seres vivos por relações de parentesco (ancestralidade comum);
- A importância fundamental do mecanismo da seleção natural no processo evolutivo;
- A coocorrência da seleção natural com mecanismos não seletivos de mudança evolutiva (menos bem compreendidos por Darwin e entre os quais sobressai a deriva genética).
Kutschera & Niklas (2004) resumem o mecanismo da evolução por seleção natural pugnado por Darwin do seguinte modo:
- Em cada geração nascem mais indivíduos do que aqueles que o meio ambiente pode suportar;
- As características morfológicas e funcionais variam de indivíduo para indivíduo;
- A competição dos indivíduos por recursos escassos gera uma luta pela sobrevivência (struggle for existence) da qual sobrevivem, e atingem a fase reprodutiva, os indivíduos mais aptos (survival of the fittest), com características peculiares de algum modo transmissíveis à descendência;
- As gerações vão-se sucedendo com pequenas modificações estruturais e funcionais;
- Da acumulação de modificações evoluem novas espécies.
Assim concretizado, o mecanismo da evolução por seleção natural processa-se à escala da população, evolvendo três componentes: a) ecológica – os indivíduos competem entre si em determinadas condições ambientais (ambiente seletivo), com contribuições diferenciadas para a geração seguinte (sucesso reprodutivo, fitness); b) genética – parte das características que condicionam a fitness são transmissíveis; c) e de genética populacional – uma população é um arranjo de características transmissíveis (variação genética) com efeito na fitness.
Retorno agora às duas perguntas formuladas no início deste ponto.
Como explicar, então, e qual a história da diversidade biológica que povoa o planeta? Darwin propôs que a especiação e a diversificação dos seres vivos eram consequências diretas da acumulação gradual de pequenas modificações trabalhadas pela seleção natural (Schluter, 2009). E foi mais longe: compreendeu que a ancestralidade comum era a chave para organizar e dar sentido à diversidade biológica, que as relações de parentesco entre as espécies se assemelhavam à ramificação de uma árvore (Figura 4) e que a noção de evolução deveria presidir à construção dos sistemas de classificação. Na Origem das Espécies escreveu: «... o Sistema Natural baseia-se na descendência com modificações ... os caracteres que o naturalista considera revelarem a verdadeira afinidade entre duas ou mais espécies, são os herdados de um ancestral comum, sendo a classificação genealógica ... comunidade de descendência é o vínculo oculto que os naturalistas têm procurado inconscientemente.» (Darwin, 1859).
Portanto, a vida na Terra evoluiu de forma gradual a partir de uma espécie-mãe de todas as espécies – hoje em dia entendida como um microambiente povoado por moléculas autorreplicantes –, que evoluiu e se pulverizou em novas linhagens evolutivas (populações, espécies, clados) (evolutionary lineages), em grande parte (mas não apenas) pela ação da seleção natural. Embora gradual, consoante as linhagens, a evolução desenrola-se a diferentes taxas de evolução (rate of evolution) e tanto mais rapidamente quanto maiores as pressões seletivas. Por exemplo, quando um animal ou uma planta ocupa um novo ambiente, a evolução acelera; à medida que este acumula adaptações ao novo ambiente, a evolução desacelera (v. «Gradualismo filético vs. equilíbrio pontuado»). A divergência de novas espécies – a especiação – segue a mesma lógica: quanto maior a estabilidade ambiental, mais baixa a taxa de aparecimento de novas características e de novas espécies. A explicação da diversidade biológica aperfeiçoou-se, evoluiu, mas a Darwin se deve o «core» da argumentação.
Darwin apercebeu-se, ainda, do papel do isolamento reprodutivo e das pequenas populações na especiação (um embrião conceptual da deriva genética) (Mallet, 2010), e compreendeu que a extinção de taxa de morfologia intermédia explica as descontinuidades morfológicas entre taxa de categoria superior à espécie. «A existência de géneros, famílias, ordens [...] e as suas relações mútuas resultam das extinções que permanentemente ocorrem entre os descendentes divergentes de um stock comum» (Darwin cit. Richards, 2012).
Quanto à segunda questão exposta no início deste capítulo, para Darwin, a ação da seleção natural sobre a variação morfológica e funcional (variação biológica; biologic variation) era suficiente para explicar as correlações forma-função dos organismos. A seleção natural moldou os organismos vivos aos seus nichos ecológicos no passado e continua ativa no presente, porque a evolução é um processo lento e sempre inacabado. Como refere Darwin: «... formas sem fim, as mais belas e as mais maravilhosas, evoluíram e continuam a evoluir» (Darwin, 1859). O mecanismo da seleção natural foi tão perturbador como revolucionário: explica o desenho dos organismos na natureza através de um processo puramente materialístico que não requer nem eventos de criação, nem a intervenção de forças sobrenaturais (J. Coyne, 2010; Mayr, 1982). A Seleção Natural é uma das mais importantes realizações da história do pensamento humano (Dennett, 1995).
Lamarckismo, neolamarckismo e neodarwinismo
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