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Algumas reflexões sobre o ensino da botânica em ciências agrárias

A botânica não é uma ciência simples, pelas razões antes enunciadas. A prática docente ensinou-me vários princípios e técnicas pedagógicas, muitos deles corroborados pela literatura da pedagogia das ciências biológicas, que reputo de essenciais para otimizar a aprendizagem da botânica no âmbito das licenciaturas s.l. em ciências agrárias. Explicito em seguida. 

A) Estrutura de uma UC de Botânica 

  • Uma UC semestral de botânica tem, obrigatoriamente, de decorrer no segundo semestre, de outro modo o material vegetal a utilizar/observar nas aulas práticas é inadequado; 
  • A substituição da organização clássica em aulas teóricas + práticas por lições teórico-práticas não é uma boa opção porque a repetição de matérias eminentemente teóricas em todas as turmas teórico-práticas é um desperdício dos recursos humanos investidos na docência; 
  • A maior parte das matérias teóricas e práticas não é mutuamente substituível: há temas eminentemente teóricos (e.g. biologia da reprodução e ciclos de vida) e outros a relegar para aulas práticas (e.g. morfologia da folha e do caule); 
  • Ainda assim, a repetição de temas mais complexos nas aulas teóricas e práticas facilita a aprendizagem (Yuan, 2022); 
  • A plataforma Kahoot! é usada há mais de uma década na componente de botânica da UC de Biossistemática da ESAB (Anexo I). Uma metanálise recente mostra que a plataforma Kahoot! tem um efeito positivo na dinâmica da sala de aula, e na aprendizagem e nas atitudes dos alunos (Wang & Tahir, 2020). A repetição espaçada (spaced repetition), i.e., a revisão da matéria dada, promove a retenção da informação, a compreensão conceptual de longo prazo e o desenvolvimento de competências reflexivas (Kang, 2016; Yuan, 2022); 
  • Os programas das componentes teórica e prática devem decorrer em paralelo; 
  • As aulas teóricas e práticas não devem coincidir no mesmo dia; 
  • A carga horária semanal da componente prática deve ser, duas a três vezes superior à da teoria; 
  • As aulas teóricas e práticas não devem ter uma duração superior, respetivamente, a 1h e 2h. Constatei um incremento da fatiga cognitiva em períodos de contacto mais prolongados. A ciência da aprendizagem mostra que a retenção da informação é menor logo no início da aula e, após um breve pico, diminui com o tempo: tem um máximo no intervalo 15-30 min após o início, com um mínimo nos primeiros 15 min (Giles et al., 1982); 
  • Lições mais curtas (e.g. práticas de 1,5 h) têm a vantagem de facilitar a organização do tempo em torno de menos temas, internamente consistentes, aproximação considerada pedagogicamente muito vantajosa (Gobet et al., 2001); 
  • Uma carga horária semanal de 1 h T + 2x1,5 h P, para um total de 14-15 semanas, é suficiente numa introdução à botânica para licenciaturas de 3 anos em ciências agrárias; 
  • Convém que as turmas práticas não ultrapassem os 15-17 alunos – com grupos maiores a atenção dos alunos decai rapidamente. Porém, grandes concentrações de alunos nas aulas teóricas não são um entrave à aprendizagem; 
  • A preparação dos alunos não é compatível com a dispersão de conteúdos por múltiplos documentos de estudo, i.e., o livro de texto acelera, estrutura e consolida a aquisição de saberes – uma UC de botânica não tem por função ensinar a investigar ou a escrever documentos científicos; 
  • A disponibilidade de conteúdos detalhados, por aula, com palavras-chave facilita enormemente a organização do estudo dos alunos; 
  • Uma frase repetidamente citada na bibliografia de pedagogia da ciência, da autoria do psicólogo russo-soviético Lev Vygotsky, resume a estreita conexão entre a aprendizagem e a linguagem: «o pensamento requer uma linguagem e a linguagem carece de pensamento». Portanto, o vocabulário é uma componente crítica da compreensão – a inexistência de um vocabulário rigoroso e consistente prejudica a literacia científica e a aprendizagem (Malatesha Joshi, 2005). Portanto, a memorização de termos (etiquetas), 

 


  • 11fitotécnica (e.g. comparação dos ciclos culturais e de técnicas de cultivo). Evidência empírica em (Uno, 2007); 
  • O mesmo acontece com a exaltação do papel da botânica na segurança alimentar [e.g. parentes selvagens das espécies cultivadas (crop wild relatives) observáveis nas visitas de campo] e na conservação da natureza (Drea, 2011); 
  • O ensino da botânica a nível superior tem, porém, de ir além das tipologias de formas, de taxa ou de uso, com a interiorização do chamado pensamento evolutivo (evolutionary thought) porque, como escrevia em 1973 o evolucionista norte-americano de origem ucraniana Theodosius Dobzhansky, «... nada em biologia [e as ciências agrárias são ramos da biologia aplicada] faz sentido exceto à luz da evolução» (Futuyma, 2005; Mayr, 1988). Denison (2012) concretiza, admiravelmente, o valor do pensamento evolutivo em agronomia. Por conseguinte, é recomendável que, continuamente, sejam feitas referências a relações estrutura-função, ao parentesco entre grupos de plantas, e aos processos de domesticação e de coevolução animal (inc. homem) -planta, por exemplo; 
  • Ao discutir evolução é necessário insistir junto dos alunos que a complexidade nas plantas não reflete uma realidade teleologicamente ordenada. A Scala Naturae aristotélica está arreigada no ensino da biologia e, para ser justo com o pensamento evolutivo mais atual, o professor de botânica tem a obrigação de a desmistificar. Faço esta discussão na primeira parte do meu livro «A Evolução das Plantas» (Aguiar, 2021a); 
  • Subscrevo um relatório datado de 1995 publicado Botanical Society of America onde se defende que os professores de botânica devem lecionar a planta como «um todo» qualquer que seja a enfase (Mlot & Niklas, 1995); 
  • Para atingir uma «compreensão da planta como um todo» têm de ser aprofundados nas aulas teóricas temas tradicionalmente pouco valorizados nas UC’s de botânica de ciências agrárias – tal é o caso dos meristemas, estrutura do corpo vegetativo das gramíneas e leguminosas, relações forma e função no corpo vegetativo, adaptações dos órgãos vegetativos à perturbação pelo fogo e pela herbivoria, sistemas sexuais e de cruzamento, polinização, desenvolvimento da flor após a polinização, dispersão da semente, a grande árvore filogenética das plantas-com-semente, e referências a plantas tropicais de interesse económico. O ensino da botânica requer uma aproximação mais holística valorizando as suas interações com o ambiente e com o Homem (Uno, 2009); 
  • As alusões às relações estrutura-função devem, então, ser constantes na sala de aula, e começar no corpo vegetativo (e.g. oposição sistema radicular fasciculado v. aprumado na captura de nutrientes e água, suculência dos órgãos vegetativos, funções do pecíolo, da folha composta e do recorte foliar, adaptações do caule ao fogo), prolongando-se à inflorescência (e.g. o porquê da organização das flores em inflorescências), à flor (e.g. funções dos verticilos florais e das variações mais comuns), ao fruto (e.g. estrutura do fruto v. dispersão) e à domesticação (e.g. mimetismo vaviloviano);