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Sistemas de reprodução

Definição de sistema de reprodução

Sob a designação comum de sistema de reprodução, discutem-se em seguida alguns aspetos da expressão sexual (sistemas sexuais) e os sistemas de cruzamento, tendo por referência as plantas com flor. Na bibliografia, os sistemas de reprodução são abordados com vários níveis de detalhe e explicitados através de uma nomenclatura especializada, infelizmente nem sempre consistente.

Sistemas sexuais

O sistema sexual (sexual system) expressa a distribuição dos órgãos sexuais ao nível do indivíduo, da população ou cultivar (nas plantas cultivadas). No Quadro III.1.1  estão resumidos os sistemas sexuais considerados por Cruden & Lloyd (1995) para o grande clado das plantas terrestres. Grosso modo, 70% das espécies de angiospérmicas são homoicas, 20% monoicas e apenas 10% dioicas (Geber et al., 1999). A monoicia e a dioicia evoluíram de forma independente em muitos grupos de plantas ancestralmente homoicas (Figuras III.1.6 e III.1.7). Admite-se que uma etapa de flores unissexuais (monoicia) precedeu, na maioria dos casos, a evolução da dioicia (Cronk, 2022).

QUADRO 43

Sistemas sexuais das plantas-terrestres (Cruden & Lloyd 2005).

Prefixo

Homoicia

Monoicia

Dioicia

Sem prefixo

Homoicia: [f. hermaf.]

Monoicia: [f.♂ + f.♀]

Dioicia: [f.♂] + [f.♀]

Andro-

 

Andromonoicia: [f.♂ + f.hermaf.]

Androdioicia: [f.♂] + [f.hermaf.], ou [f.♂] + [f.♂ + f.♀]

Gino-

 

Ginomonoicia: [f.♀ + f.hermaf.]

Ginodioicia*: [f.♀] + [f.hermaf.], ou [f.♀] + [f.♂ + f.♀]

Tri-

 

Trimonoicia: [f.♂ + f.♀ + f.hermaf.]

Tridioicia*: [f.♂] + [f.♀] + [f.hermaf.], ou [f.♂] + [f.♀] + [f.♂ + f.♀]

Legenda: [ ] – indivíduo; f. – flor; hermaf. – hermafrodita.

* Em agronomia, é frequente designar por ginoicas as cultivares apenas com flores ♀.

Silene.jpgFigura III.1.6. Sistemas sexuais. Dioicia em Silene latifolia (Caryophyllaceae). A) e B) flor ♂, n.b.: antóforo (indicado por uma seta). C) e D) flor ♀ com cinco estiletes livres. [Bragança; fotografias do autor.]

273 MUSA Musa×paradisiaca.JPGFigura III.1.7. Sistemas sexuais. Monoicia em banana-da-terra (Musa × paradisiaca, Musaceae). N.b.: frutos em formação e flores ♂ na axila de grandes brácteas na extremidade distal (em baixo) da inflorescência. [Gabú, Guiné-Bissau; fotografia do autor.]

Existe uma forte associação entre a polinização abiótica (pelo vento e pela água) e a dioicia e a monoicia. A explicação é sobretudo biomecânica. A dispersão do pólen requer estames flexíveis e a captura do pólen por estigmas longos e expostos, que numa flor hermafrodita correm o risco de interferir fisicamente. Por outro lado, a turbulência do ar e da água podem promover a autogamia (nas flores sem sistemas de autoincompatibilidade) e, uma vez que muitas destas espécies produzem grandes massas de pólen, provocar o congestionamento dos estigmas (Renner & Ricklefs, 1995).

A monoicia e a dioicia têm maior expressão ambientes extremos – demasiado secos (desertos e semidesertos), frios (flora alpina e de tundra), salinos (estuários e sistemas lagunares), pobres em nutrientes (flora ultrabásica), húmidos (flora aquática dulçaquícola e marinha) ou ilhas – onde parecem atribuir mais vantagens adaptativas do que condições ambientais mais benignas para a vida vegetal (Renner & Ricklefs, 1995). A promoção da diversidade genética – crítica na adaptação e na persistência em condições extremas e instáveis – será a principal causa, mas não a única. A associação a ambientes extremos é particularmente evidente nas plantas aquáticas, sendo mais frequente nas espécies permanentemente submersas (de polinização hidrófila e ambientes mais extremos) do que nas espécies com flores emersas (Philbrick & Les, 1996). A dioicia é também mais frequente em plantas lenhosas, em particular nas de maior longevidade, talvez por estas espécies atingirem a fase adulta tardiamente e, então, ser-lhes evolutivamente conveniente acelerar a aquisição de diversidade genética. Mas haverá outras causas evolutivas, por exemplo, muitas árvores são anemófilas.

A monoicia e a dioicia são menos frequentes do que a homoicia porque envolvem custos energéticos elevados, pela simples razão de que uma parte significativa dos indivíduos (na dioicia) ou das flores (na monoicia) são e não produzem semente. Outras formas de expressão sexual reduzem os custos da monoicia e da dioicia estritas mantendo níveis intermédios de alogamia; e.g. diversas variantes da poligamia (indivíduos com flores hermafroditas e flores unissexuais; Quadro III.1.1.), uma condição muito frequente na natureza. Veremos, adiante, que as angiospérmicas desenvolveram muitos outros mecanismos de promoção da alogamia alternativos, sem os custos da monoicia e da dioicia.

Os sistemas sexuais são particularmente diversos nas cucurbitáceas (Zhang et al., 2006). A expressão dos sete sistemas identificados na família resulta de uma complexa interação entre a genética e o ambiente. As cucurbitáceas cultivadas demonstram bem a complexidade da sexualidade desta família de trepadeiras herbáceas. A melancia e muitas abóboras (Cucurbita) cultivadas são monoicas. Os pepinos podem ser monoicos ou exclusivamente (ginoicas); as cultivares ginoicas são substancialmente mais produtivas porque produzem um pepino por flor, em contrapartida, exigem solos muito férteis e a presença de plantas polinizadoras. A maioria das cultivares de meloeiro são andromonoicas ou trimonoicas. As primeiras flores do meloeiro são ; as flores e/ou hermafroditas diferenciam-se nos ramos laterais secundários ou terciários. O ramo primário é geralmente podado – capado na terminologia agronómica – acima da segunda folha verdadeira para acelerar a ramificação e o aparecimento de flores ou hermafroditas, e dessa forma antecipar e aumentar a produção de frutos.

No ponto «Coevolução polinizador animal-planta polinizada» prova-se que a figueira cultivada é uma espécie ginodioica, com cultivares constituídas por indivíduos exclusivamente (cultivares edíveis) e cultivares com síconos e (caprifigos). São também ginodioicos alguns tomilhos (Thymus, Lamiaceae). A androdioicia é muito menos frequente do que a ginodioicia. Alguns Asparagus (Asparagaceae) e certas solanáceas são androdioicas (Pannell, 2002).

Sistemas de cruzamento

Reconhecem-se dois tipos fundamentais de sistemas de cruzamento (mating systems):

  • Autopolinização (= autofecundação; self-pollination) – transferência de pólen no interior de uma flor, entre flores de um mesmo indivíduo ou entre flores de indivíduos pertencentes ao mesmo clone;
  • Polinização cruzada (= alogamia, xenogamia; cross-pollination) – transferência de pólen entre dois indivíduos distintos.

A autopolinização tem dois subtipos:

  • Geitonogamia (geitonogamy) – polinização de flores com o pólen oriundo de outras flores do mesmo indivíduo;
  • Autogamia (= polinização direta; autogamy) – os primórdios seminais e o pólen envolvidos na fecundação procedem da mesma flor.

Nas plantas cultivadas propagadas vegetativamente (e.g. árvores de fruto), a polinização cruzada refere-se à transferência de pólen entre plantas de diferentes cultivares (de diferentes genótipos).

A proporção de sementes resultantes de polinização cruzada varia muito de espécie para espécie e entre populações da mesma espécie. Grosso modo, 80-90% das angiospérmicas são exclusiva ou predominantemente alogâmicas e 10-20 % autogâmicas. No estudo dos sistemas de cruzamento considera-se que uma dada população ou espécie tem um sistema de cruzamento misto quando a taxa de polinização cruzada (outcrossing rate), i.e., quando a proporção de sementes alogâmicas se situa no intervalo 0,2-0,8 (Goodwillie et al., 2005). Os mesmos autores avaliaram a partir da literatura o sistema de cruzamento de 345 plantas com semente e concluíram que 44% das espécies estudadas eram alogâmicas, 42% tinham um sistema de cruzamento misto e 14% optavam pela autopolinização. Embora haja um pico de frequência na alogamia, os sistemas mistos têm grande expressão porque constituem uma solução de compromisso, seletivamente vantajosa, que evita os riscos da autopolinização e da polinização cruzada perfeita descritos em seguida. Os sistemas mistos são mais comuns nas plantas polinizadas por insetos do que na polinização pelo vento. As famílias de polinização cruzada perfeita ou quase apresentam, frequentemente, mecanismos especializados de polinização, flores zigomórficas e corola simpétala; e.g. Balsaminaceae, Orchidaceae e muitas Fabaceae. Correspondem a linhagens evolutivamente avançadas e muito diversas. As plantas com elevados níveis de autogamia geralmente têm corola actinomórfica, dialipétala (Lloyd & Shoen, 1992). A autogamia está ainda associada a ciclos de vida anuais ou bienais, e a plantas com áreas de distribuição vastas (Razanajatovo et al., 2016). Retomam-se estas correlações mais à frente.

Vantagens e desvantagens da polinização cruzada

Os descendentes de eventos de autopolinização ou de cruzamentos entre indivíduos geneticamente próximos são, geralmente, mais débeis e produzem menos semente do que os descendentes de cruzamentos entre indivíduos não aparentados. No jargão da biologia evolutiva, diz-se que têm uma fitness darwiniana inferior relativamente às descendências de polinização cruzada (Quadro 9). Esta redução do sucesso reprodutivo de indivíduos e populações é designada por depressão endogâmica. Admite-se que a manifestação de genes deletérios recessivos, em consequência da diminuição da heterozigotia, será o mecanismo mais importante por detrás da depressão endogâmica. Soma-se um outro efeito nocivo, o desconto de pólen (pollen discount): o pólen gasto na autopolinização não é investido na conceção de indivíduos superiores por polinização cruzada, tem, usando o vocabulário da ciência económica, um custo de oportunidade (Harder & Wilson, 1998).

A polinização cruzada (i) atenua os efeitos deletérios da depressão endogâmica, (ii) incrementa a variação genética à escala do indivíduo (heterozigotia dos indivíduos) e da população (maior diversidade alélica e variação nas frequências alélicas) e (iii) aumenta a probabilidade de fixação de mutações adaptativas (Wright & Barrett, 2010). Por conseguinte, a produção de progénies superiores é, de imediato, uma das maiores vantagens da polinização cruzada (e dos mecanismos que a promovem). Por outro lado, a promoção da variação genética e da fixação de mutações vantajosas acelera as taxas evolutivas por adaptação, aumenta o potencial evolutivo de populações e espécies, e reduz a probabilidade da sua extinção. Em suma, a polinização cruzada leva ainda mais longe as vantagens da sexualidade.

Os efeitos detrimentais da autopolinização e, implicitamente, as vantagens da polinização cruzada são uma poderosa força evolutiva. Os custos da autopolinização são tais que gerações sucessivas de cruzamentos autogâmicos podem conduzir uma linhagem à extinção (Barrett, 2014). Consequentemente, a polinização cruzada é mais comum nas plantas com semente do que a autopolinização, e os mecanismos que a promovem são diversos e abundantes. A natureza detesta a perpetuação da autofecundação, intuiu Darwin em 1876.

O simples facto de muitas plantas recorrerem à autopolinização demonstra, no entanto, que a polinização cruzada nem sempre é a melhor estratégia. As vantagens da autopolinização sobrepõem-se às da alogamia quando os polinizadores ou outras plantas da mesma espécie (parceiros sexuais) são escassos. Por exemplo, as Yucca (Asparagaceae) neotropicais são autoincompatíveis no centro (core) da sua área de distribuição, mas autocompatíveis na periferia onde os polinizadores naturais – microlepidópteros do género Tegeticula (Prodoxidae) – começam a escassear devido a fatores climáticos (Dodd & Linhart, 1994). O mesmo princípio aplica-se a populações de reduzida dimensão ou baixa densidade – uma vez que a probabilidade de encontro entre os sexos é proporcional à densidade populacional – ou a espécies de floração precoce, cuja ântese pode ocorrer antes da emergência dos polinizadores. Por motivos similares, a autopolinização é mais comum em plantas herbáceas anuais, sobretudo em populações de baixa densidade, do que em plantas lenhosas e longevas (Barrett, 2014). Estes exemplos caem na chamada hipótese da segurança reprodutiva (reproductive assurance hypothesis), originalmente formulada por Charles Darwin.

A lei de Baker é uma formulação empírica que hipotetisa que as espécies autogâmicas são, potencialmente, colonizadoras a longa distância mais eficientes do que as espécies alogâmicas (Baker, 1955). O acréscimo de eficiência deve-se à baixa probabilidade do polinizador se dispersar a longa distância em simultâneo com a planta polinizada, ou desta relação mutualista ser igualmente eficiente ao território de origem. A lei de Baker tem sido confirmada em estudos dos sistemas sexuais de plantas escapadas de cultura e naturalizadas, de carácter invasor ou não (Pannell et al., 2015).

A alogamia ameaça a segurança reprodutiva nas populações finícolas (localizadas nas franjas da área de distribuição) ou em populações de ambientes extremos (e.g. solos tóxicos derivados de rochas ultrabásicas) porque pode diluir adaptações ou quebrar combinações génicas vantajosas (Levin 2010). Quando o ambiente é muito estável (previsível), também não vale a pena investir cegamente na polinização cruzada porque a aquisição de variação genética é escassamente adaptativa, como acontece em muitos grupos de plantas estritamente aquáticas (Philbrick & Les, 1996). A autopolinização também é vantajosa em espécies invasoras ou que colonizam habitats muito instáveis, que só têm a ganhar em produzir rapidamente muitos descendentes, sem desperdiçar recursos em estruturas de promoção da alogamia.

A transição da polinização cruzada para a autogamia ocorreu milhares de vezes, mas a sua reversão é menos frequente, um indício de que a autogamia frequentemente representa um beco sem saída evolutivo (evolutionary dead end) (Barrett, 2014). A rigidez da estrutura genética expõe muitas espécies autogâmicas a ciclos repetidos de colonização-extinção. Consequentemente, as espécies autogâmicas têm uma variação genética limitada ao nível da população, mas um grau de diferenciação elevado entre populações. Nas espécies alogâmicas sucede o inverso (Barrett, 2014).Os riscos de extinção associados à autopolinização prolongada são, porém, mitigados por quatro mecanismos. Por um lado, a autopolinização expurga os genes deletérios, i.e., o principal fator que se opõe à evolução da autopolinização pode ser eliminado pela própria autopolinização (Goodwillie et al., 2005). A poliploidia característica de muitas plantas diminui a expressão dos genes deletérios e incrementa a taxa de acumulação de variação genética por mutação, a tal «matéria-prima» da evolução (Briggs & Walters, 2016). A maior parte das plantas classificadas como autogâmicas, na realidade, não opta por uma autogamia perfeita e os eventos periódicos de polinização cruzada podem ser suficientes para repor a variação (Linhart, 2015; Razanajatovo et al., 2016).

A maioria das plantas domesticadas é autogâmica, embora os seus ancestrais fossem frequentemente alogâmicos (Zohary, 2001). Neste contexto, a autogamia apresenta várias vantagens. Em primeiro lugar, isolou rapidamente as linhagens em domesticação dos seus progenitores selvagens, permitindo o seu cultivo em proximidade sem risco de hibridação. Em segundo lugar, diferentes genótipos de espécies autogâmicas podem ser cultivados lado a lado, ou mesmo em mistura, sem comprometer a identidade varietal. São exemplos de plantas cultivadas autogâmicas o trigo-mole, a aveia, a cevada, o arroz, a ervilheira, o feijoeiro-comum, o linho e o trevo-subterrâneo. O algodoeiro, o tomateiro e as pimenteiras são também maioritariamente autogâmicos, embora produzam uma percentagem variável de sementes por alogamia.

Pelo contrário, o centeio, o milho e o milheto são espécies alogâmicas. O mesmo se verifica na maioria das plantas lenhosas cultivadas (por exemplo, árvores de fruto), que são, por isso, altamente heterozigóticas e propagadas de forma assexuada (vd.v. «Reprodução assexuada»; Hartmann et al. (2014)). A preservação de cultivares de espécies alogâmicas propagadas por semente (como o centeio, o milho e o milho-painço) é complexa, uma vez que é necessário evitar a contaminação genética por genótipos indesejáveis. Isto é conseguido através de métodos de isolamento, como o isolamento geográfico ou a polinização controlada de flores femininas.