Mais características do processo evolutivo
Acaso ou necessidade?
A evolução fortuita de características adaptativas não pode ser confundida com necessidade evolutiva. A ilusão de que a evolução é motivada pela necessidade – pelo uso e desuso, na teoria lamarckiana da evolução – emerge da observação reiterada e de uma interpretação errónea de quatro consequências da evolução por adaptação: i) a concatenação das estruturas e dos processos fisiológicos no corpo dos seres vivos; ii) as correlações entre a forma e a função; iii) a complementaridade das espécies nos ecossistemas, e iv) a inexistência de linhagens com características intermédias. A evidência acumulada em 150 anos de darwinismo mostra que o mecanismo da evolução por seleção é suficiente para explicar o arranjo de espécies com uma estrutura e fisiologia adaptadas ao meio ambiente, e funções precisas à escala do ecossistema, que caracteriza a biota atual. Como Darwin havia reconhecido, as extinções de populações e linhagens explicam os hiatos nas formas dos seres vivos atuais. Só por essa razão não existem plantas intermédias entre as gimnospérmicas e as plantas com flor, nem espécies com uma morfologia a meio caminho entre as aves e os crocodilos. As linhagens de seres vivos que hoje povoam o planeta são um subconjunto das experiências evolutivas do passado.
É muito fácil cair na armadilha da necessidade evolutiva quando se discutem estruturas ou funções complexas. A semente é o paradigma da estrutura complexa nas plantas. Cada uma das etapas da génese evolutiva da semente (v. «A evolução do primórdio seminal») – heterosporia, monomegasporia, redução (simplificação) do megagametófito, retenção dos megásporos e dos megagametófitos, evolução do nucelo e diferenciação do tegumento – persistiu na semente por duas razões: i) no momento da sua evolução conferia vantagens adaptativas (incrementava o fitness); ii) a semente e todas as estruturas intermédias da sequência evolutiva (evolutionary sequence) que lhe deu origem foram, pelo menos temporariamente, vantajosas (v. «Evolução de caracteres complexos. Reversão de caracteres»). Cada uma das características da semente pode até ter evoluído em ambientes seletivos distintos e persistido porque, fruto do acaso, foi sucedida por características adaptativas. Mais: na sequência evolutiva da génese da semente, algumas características só tiveram oportunidade de evoluir porque foram precedidas por outras que as facilitaram; e.g., por razões meramente físicas – espaço disponível –, a endomegasporia (retenção e germinação do megásporo no interior das paredes do megasporângio) foi precedida pela redução do megagametófito. Pese embora a lógica interna de todas estas hipóteses, a verdade é que não estão resolvidos o quando (tempo), o como (sequência evolutiva) e as causas (vantagens seletivas) da evolução de cada uma das características que compõem a semente e da semente em si. A evolução de cada uma das características que fazem a semente, porém, não se deveu ao sucesso evolutivo da semente. Pode até dar-se o caso, mais do que provável, de algumas das características da semente, e dos processos e estruturas que lhe estão associados, fixados num passado recuado serem hoje desvantajosos, não o suficiente para a semente ser evolutivamente inviável. As proposições do tipo «X aconteceu para que Y lhe pudesse suceder», as chamadas proposições teleológicas, são falsas. As narrativas que evocam objetivos ou uma qualquer predestinação na evolução biológica devem ser rejeitadas sem agravo.
No ponto «Tendências evolutivas» (das angiospérmicas), damos mais dois exemplos de proposições teleológicas. Pela mesma razão, ao contrário do que é defendido nos meios criacionistas, o potencial evolutivo de uma dada característica (e.g., precursores da lenhina ou retenção do gametófito) só pode ser avaliado a posteriori. Em resumo: a seleção natural não planeia o futuro; só as vantagens imediatas contam (Wright & Barrett, 2010). Uma característica que confira grandes vantagens no curto prazo pode, no futuro, diminuir a probabilidade de uma espécie ou de um grupo de espécies se diversificar, aumentar os seus riscos de extinção, ou todo o contrário.
A evolução é (geralmente) oportunística
Veremos que a especiação é intrinsecamente ecológica (a disponibilidade de nichos ecológicos estimula a especiação), que as grandes crises ambientais planetárias se traduziram em surtos de inovação evolutiva, e que a aquisição de determinadas características abriu oportunidades evolutivas (e.g. as florestas de angiospérmicas do Paleoceno). É um facto que os organismos evoluem rapidamente e que as taxas de especiação disparam perante novas oportunidades ecológicas e ambientais: a evolução capitaliza as oportunidades ambientais e ecológicas: é intrinsecamente oportunística. Porém, as oportunidades só podem ser aproveitadas se a priori houver organismos geneticamente variáveis com características adequadas para tal. A ubiquidade dos períodos de estase evolutiva prova que as oportunidades nem sempre são aproveitadas (Erwin, 2015). O Boring Billion é disso um exemplo paradigmático).
A associação da manifestação de uma putativa adaptação no registo fóssil ou inferida na filogenia com a evolução de um nicho ecológico é outra armadilha comum no pensamento evolutivo. Um exemplo clássico é a evolução da hipsodontia nos herbívoros (dentes com uma coroa volumosa coberta por uma espessa camada de marfim) com o desenvolvimento das primeiras pastagens de gramíneas. Sabe-se hoje que o bioma pastagem é evolutivamente anterior às adaptações ao seu consumo nos grandes herbívoros mamíferos (Strömberg, 2011). Portanto, a presença de adaptações indicia a disponibilidade do nicho correspondente, mas evolução de um dado nicho não arrasta, inevitavelmente, a evolução de adaptações.
A evolução é «afeiçoada» mas não determinada por restrições evolutivas
A evolução está sujeita a restrições evolutivas (evolutionary constraints) de vária ordem – e.g. físicas, características dos materiais biológicos, falta de variação genética ou trajetórias de desenvolvimento (developmental pathways) – que balizam todo o processo evolutivo e condicionam seu resultado. Existem, assim, soluções evolutivas para um determinado desafio que são a priori impossíveis. Por exemplo, as propriedades dos tecidos de resistência e as leis da física obviam a evolução de árvores com quilómetros de altura e insetos da dimensão de elefantes. O leque de soluções evolutivas é vasto, mas não infinito: a evolução tem limites (Dennett, 1995).
Algumas mudanças evolutivas morfofisiológicas são mais prováveis do que outras e a sua propensão varia de grupo para grupo (Endress, 2011). A evolução das características reprodutivas tende a ser mais conservadora – por estar sujeita a uma forte seleção de estabilização por parte dos polinizadores – do que a evolução de características anatómicas ou morfológicas. Esta é a razão pela qual a morfologia floral é determinante na organização taxonómica das angiospérmicas (Stebbins, 1970; Wagner & Altenberg, 1996). Ainda assim, a nível reprodutivo, a posição do ovário e a filotaxia da flor são evolutivamente flexíveis; a evolução do fruto, pelo menos ao nível da ordem, também não parece estar sujeita a significativas restrições evolutivas (Lorts et al., 2008). A evolução da polinização anemófila, em resposta à escassez de polinizadores, está dependente da existência prévia de determinadas características da flor facilitadoras da anemofilia (e.g. pólen leve e seco) (Culley et al., 2002).
A tendência de as espécies reterem a ecologia dos seus ancestrais é notável: a conservação do nicho ecológico pode estender-se por milhões de anos (Crisp et al., 2009). Nas plantas com flor, a resistência à transição entre biomas é fortíssima. De facto, a transição de linhagens de plantas dos biomas tropicais para os biomas extratropicais (temperados, mediterrânicos, boreais e polares) ocorreu muito raramente (Crisp et al., 2009). Esta dificuldade tem duas importantes consequências: i) as adaptações a novos biomas são frequentemente seguidas de intensas radiações adaptativas (explicação em «Extinções e radiações adaptativas»); ii) as alterações climáticas profundas aceleram dramaticamente as taxas de extinção – constituindo um dos eventos planetários com efeitos mais devastadores na diversidade biológica (Ezard et al., 2011).
As restrições evolutivas podem ser de tal maneira poderosas que a morfologia de uma linhagem, ou mesmo de uma espécie, pode permanecer inalterada durante centenas de milhares de anos. O ginkgo é um conhecido exemplo nas plantas com semente. Admite-se que algumas destas linhagens atingiram um beco sem saída evolutivo, estando bloqueadas num nicho ecológico muito estreito, incapazes de evoluir, o que coloca muitas delas sob um risco real de extinção (Figura 14).
Quando as «forças» dependentes da linhagem condicionam a evolução, diz-se que ocorrem restrições filogenéticas (Futuyma, 2005). Todo o botânico de campo já se deparou com estas restrições, patentes na tendência que determinadas linhagens mostram para ocupar os mesmos nichos ecológicos. É impressionante encontrar as mesmas famílias, por vezes os mesmos géneros, em solos temporariamente encharcados da Europa mediterrânica, da Califórnia e até no Cerrado do Brasil (e.g., Gentianaceae). As Amaranthaceae estão sobrerrepresentadas nos sapais e salinas holárticos (Figura 13), e um leque alargado de famílias é constituído apenas por plantas aquáticas. Nem as Amaranthaceae nem qualquer outra família do clado das cariofilídeas (e.g., Cactaceae, Polygonaceae) integram o estrato arbóreo de uma floresta temperada ou mediterrânica. As monocotiledóneas descendem de uma erva aquática sem crescimento secundário. Apesar do seu enorme sucesso evolutivo, nunca adquiriram um crescimento secundário tão eficiente como o das árvores dicotiledóneas; talvez por isso não existam florestas tropicais húmidas dominadas por monocotiledóneas.
Se a história evolutiva passada influencia as trajetórias evolutivas presentes, então a seleção positiva ou negativa de uma dada característica compromete a evolução de outras, e a trajetória futura do processo evolutivo fica irremediavelmente condicionada. A adaptação a um nicho ecológico pode dificultar ou bloquear a adaptação posterior a um outro nicho; a coevolução com um determinado grupo de polinizadores pode impedir o alargamento do espetro de polinizadores. A adaptação tem sempre um custo de oportunidade.
Em resumo, a seleção natural seleciona adaptações, e as adaptações condicionam a ação da seleção. Aliás, basta que uma mutação seja fixada por seleção para que a matéria-prima da evolução – a variação biológica transmitida pelos genes – seja permanentemente alterada e, dessa forma, condicionados os rumos da evolução.
As restrições evolutivas encurtam as soluções evolutivas possíveis, consequentemente, a evolução tende a seguir caminhos determinados, o que se traduz em convergência evolutiva. O conceito de canalização evolutiva (Evolutionary Channeling, Evolutionary Canalization) expressa esta tendência da evolução não ser orientada apenas pela seleção natural, mas também pela organização interna dos organismos, facto que introduz um elemento de predictibilidade no processo evolutivo.
Toda a evolução está sujeita a restrições de vária ordem. Porém, mesmo sob tais restrições, para o mesmo ambiente seletivo pode haver mais do que uma solução evolutiva, com inúmeras variantes, e o ambiente seletivo, por sua vez, é imprevisível e instável. Por exemplo, as folhas simples grandes são, teoricamente, vantajosas quando as plantas competem ferozmente pela luz. Têm, porém, uma desvantagem grave: quebram-se e rasgam-se com facilidade. As folhas compostas e as folhas profundamente recortadas são duas soluções alternativas para o mesmo problema (Geeta et al., 2012), ensaiadas em vários grupos taxonómicos (e.g., rosáceas). Nos ambientes hiperdesérticos tropicais, predominam plantas anuais (que cumprem rapidamente o seu ciclo de vida nos períodos de chuva), plantas gordas (que acumulam água) e espécies com sistemas radiculares profundantes (capazes de atingir toalhas freáticas profundas): as aizoáceas exploraram as três opções. Portanto, a canalização evolutiva não diminui a aleatoriedade do processo evolutivo.
As restrições evolutivas apenas afeiçoam a evolução: a evolução não é um fenómeno determinístico (Losos, 2017). A extinção é a única inevitabilidade na evolução dos seres vivos.
A evolução nem sempre é parcimoniosa
A evolução tendencialmente produz inovações modificando estruturas ou mecanismos preexistentes, em vez de os criar ad novo (Jacob, 1977). Quer isto dizer que muitas características dos seres vivos atuais resultam de elaborações evolutivas de características mais antigas, com uma estrutura e função originalmente distintas. A criação ad novo envolve mais passos evolutivos, i.e., é menos parcimoniosa, e, consequentemente, é mais improvável. Vejamos alguns exemplos. A lenhina evoluiu a partir de substâncias mais simples que conferiam resistência às radiações UV nas primeiras plantas terrestres (v. «As plantas vasculares»). Algo semelhante ocorreu na evolução dos estomas e da semente (v. «As primeiras plantas com semente»). O papel regulatório dos estomas na homeo-hidria das plantas vasculares é uma «utilização» posterior de uma estrutura com funções inicialmente relacionadas com a dependência do esporófito em relação ao gametófito e à dispersão de esporos. Um erro no funcionamento do esporângio do ancestral de todas as plantas com semente, por razão desconhecida, persistiu, abrindo caminho a uma nova e bem-sucedida linhagem de plantas terrestres. Gould & Vrba (1982)designaram por exaptações as características produzidas por seleção que desempenham funções distintas daquelas sob cuja influência evoluíram. Com o mesmo sentido foi usado o termo pré-adaptação.
Os seres vivos atuais, e as linhagens a que pertencem, são aqueles que conseguiram, por acaso, adaptar-se e readaptar-se a um mundo em permanente mudança. Mais; embora a evolução seja tendencialmente parcimoniosa, a parcimónia não é um requisito e muito menos uma lei da evolução (Crisci, 1982): a evolução de características e funções não segue, por vezes, os caminhos mais simples.
A complexidade não é uma inevitabilidade
Nos livros-texto de biologia, a exposição da evolução das plantas, ou de qualquer outro grupo de seres vivos, começa nas formas mais simples e acaba nos grupos mais recentes e avançados, ricos em caracteres derivados (apomorfias). A exposição diacrónica, com a escala de tempo geológico em pano de fundo, é a melhor forma de ensinar a evolução, mas existe o risco de menorizar a história evolutiva dos grupos ditos mais primitivos e de veicular as noções teleológicas de que a evolução é unidirecional, que os grupos mais antigos são sempre estruturalmente mais simples e que essa simplicidade incrementa os riscos de extinção perante a inexorável evolução de linhagens de corpo mais complexo. Nos diagramas filogenéticos do reino animal, com frequência é evidenciada a espécie humana, o mesmo acontecendo com as angiospérmicas nos estudos de evolução de plantas. O scala naturaearistotélico, a grande cadeia da vida, de acordo com o qual os seres vivos estão organizados numa escala de perfeição encimada pelo Homem, evocando as narrativas evolutivas de progresso, de direcionalidade e de predestinação, continua a condicionar a explanação do processo evolutivo.
A observação de certos fósseis de mamíferos sul-americanos convenceu Darwin de que a evolução é mais bem representada por uma árvore (Figura 4) em permanente ramificação do que por uma simples escada de progresso (Bowler, 1996). A complexidade não é uma inevitabilidade, nem um sinónimo de sucesso evolutivo (Gould, 2002). Os microrganismos são uma prova disso mesmo: têm uma estrutura e uma fisiologia simples, surgiram em etapas recuadas da vida na Terra, são extraordinariamente abundantes, permanecem essenciais nos ciclos biogeoquímicos e foram cruciais nas pressões seletivas que conduziram à emergência dos metazoários (= animais) e das plantas. Dois terços da história da vida terráquea escreveram-se com seres unicelulares. Dos 29 grandes grupos de eucariotas reconhecidos por (Adl et al., 2012), somente cinco contêm seres de grande dimensão: Chloroplastida (inc. ‘algas verdes’ e plantas terrestres), Rhodophyceae (algas vermelhas), SAR (inc. algas castanhas), Fungi (fungos) e Metazoa (animais). Ainda assim, estes cinco grupos incluem seres unicelulares. Por outro lado, vários grupos de seres vivos relativamente simples evoluíram de formas mais complexas. Algumas, ‘algas verdes’, unicelulares têm origem em formas multicelulares (e.g., em ‘algas verdes’, filamentosas ramificadas), as quais, por sua vez, haviam evoluído a partir de formas unicelulares. O ancestral comum das Zygnematophyceae e dos embriófitos era genética e morfologicamente mais complexo do que as Zygnematophyceae atuais. As hepáticas possuem um corpo estruturalmente bem mais simples (e.g. sem estomas) do que o do ancestral comum de briófitos e plantas vasculares (J. W. Clark et al., 2022). Os Psilotum (Ophioglossidae) não dispõem nem de raízes nem de megafilos, embora provenham de uma linhagem de plantas vasculares com raízes e folhas verdadeiras. As minúsculas e bem-sucedidas lentilhas-d’água (e.g., Lemna e Wolfia, Araceae) descendem de plantas de muito maior dimensão com inflorescências complexas (Figura 12). A Wolfia arrhiza nem sequer raízes tem.
Embora a complexidade não seja uma inevitabilidade evolutiva, é facto que a fisiologia, os órgãos vegetativos e reprodutivos e os mecanismos de reprodução se complexificaram e diversificaram ao longo do tempo em muitas linhagens de plantas. Nas plantas sucedeu ainda que o último grande grupo a se diferenciar – as angiospérmicas – é, simultaneamente, o mais bem-sucedido (com maior número de indivíduos, espécies e biomassa) e o grupo morfológica e fisiologicamente mais complexo e diverso. Nos animais, pelo contrário, só as formigas (Hymenoptera, Formicidae) têm mais biomassa do que todos os vertebrados terrestres. No entanto, muitas alternativas evolutivas se esboçaram entre as gimnospérmicas e os ‘pteridófitos’, tão ou mais complexas do que as angiospérmicas, e que desapareceram sem deixar rasto. Na extensa história das plantas, algumas linhagens complexificaram-se, outras permaneceram em estase evolutiva, algumas evoluíram para formas mais simples e muitas mais extinguiram-se. Se a complexidade não é um sinónimo de sucesso evolutivo, então não tem sentido o uso do conceito de progresso em evolução. Como sempre acontece, a seleção natural opera em favor da complexidade quando esta incrementa o sucesso reprodutivo, e vice-versa.
A evolução não otimiza os seres vivos
A expressão de um qualquer carácter fenotípico nos seres vivos faz-se sempre à custa da expressão de outros; tem custos. Numa árvore fruteira, o investimento em frutos grandes, ricos em energia, reduz, inevitavelmente, o crescimento vegetativo. Do mesmo modo, durante o processo evolutivo, a seleção positiva de uma característica pode afetar negativamente outras características potencialmente vantajosas (que incrementam o fitness): diz-se, então, que há um trade-off de fitness (fitness trade-off) (Quadro 1). Por exemplo, a evolução de sementes pesadas de grande dimensão compromete o rácio número sementes/planta e a sua dispersão: sementes grandes dão origem a plântulas vigorosas e competitivas à custa de uma redução da probabilidade (porque as sementes são poucas e dispersam-se com dificuldade) de uma delas germinar num microssítio adequado (Sundaresan, 2005). Uma planta não pode, em simultâneo, produzir muitas sementes e investir em sementes grandes porque os recursos são limitados. A flora de calcários é muito distinta da flora acidófila: a adaptação a solos calcários compromete a capacidade de colonizar solos ácidos, e vice-versa. Dificilmente uma planta é ao mesmo tempo calcícola e acidófila, assim como aquática e terrestre, habita a alta montanha e as terras baixas, e por aí adiante. Pela mesma razão, não é expectável que o uso de transgénicos possa gerar uma superinfestante que afogue o planeta numa biomassa vegetal tóxica. A partir desta linha argumentativa nasce uma das explicações para o facto da biota estar segmentada em espécies.
A seleção não cria organismos perfeitos, somente organismos adaptados a um determinado nicho ecológico, sob um determinado ambiente seletivo (intrinsecamente instável), com características estruturais e funcionais subótimas quando analisadas per se ou no seu todo. Dada a natureza estocástica do processo evolutivo nem sempre a seleção escolheu a melhor solução. De certo modo, Darwin antecipa isto mesmo quando, perto do final do último capítulo da primeira edição de A Origem, escreveu: «Nem nos devemos admirar se todos os artifícios na natureza não forem [...] absolutamente perfeitos. E se alguns deles são abomináveis para as nossas ideias de fitness.» Por vezes nem sequer evoluíram soluções para restrições estruturais e funcionais dos organismos tão importantes como a atividade de oxigenase da enzima RuBisCo «v. QUADRO 13 Fotossíntese C3 e C4», ou a sensibilidade da nitrogenase ao O2 «v. Evento de Oxidação Neoproterozoico.»
As pressões de seleção são temporal e espacialmente instáveis porque os recursos e as condições ambientais variam ao longo do tempo e de lugar para lugar, e as taxas de evolução dos parasitas são por regra elevadas. Consequentemente, o fitness conferido por um alelo (ou por um gene) é também inconstante. Os organismos atuais são o resultado de uma acumulação improvável de mutações e recombinações felizes, por enquanto evolutivamente bem-sucedida. O sucesso evolutivo de uma linhagem num dado período geológico não implicou um sucesso acrescido nos períodos geológicos seguintes. Gozar de um grande sucesso evolutivo no presente não é garantia de êxito no futuro. Num mundo em permanente mudança, qualquer população ou espécie está irremediavelmente desatualizada do ponto de vista evolutivo, e em risco de extinção. As adaptações contam uma história do passado, enquanto a seleção trabalha o presente.
Como se refere no ponto «Extinções e radiações adaptativas», a evolução de novas características que abrem o acesso a novos nichos ecológicos facilita a especiação e a radiação adaptativa, porém, estas inovações podem, eventualmente, descambar mais tarde numa redução da capacidade competitiva frente a outras espécies e na extinção (McGee et al., 2015). A história evolutiva das gimnospérmicas está repleta de exemplos. Por exemplo, as adaptações muito especializadas a habitats muito peculiares pagaram-se, em muitas linhagens, com a incapacidade de invadir novos nichos ecológicos, e revelaram-se contraproducentes no longo prazo.
A evolução é imprevisível e irrepetível
As duas principais características da evolução talvez sejam, então, a sua imprevisibilidade e irrepetibilidade. A Terra está povoada de mamíferos, de aves, de insetos, de plantas com flor, de fetos, musgos e algas. Uma pequena alteração na sequência de mutações dos genes que controlaram os primeiros sistemas bioquímicos, na trajetória geológica da Terra, na paleoquímica da atmosfera ou na sequência de catástrofes planetárias, e a biota e os ecossistemas atuais seriam outros, certamente sem homens nem flores. Stephen J. Gould referia, com algum humor, que se «fosse possível recuar 500 M.a. e repetir de novo o filme da vida [...] não haveria humanos, provavelmente nem sequer qualquer coisa consciente» (Academy of Achievement, 2009). Qualquer grupo de seres vivos é um acidente evolutivo irrepetível.
As provas mais concludentes da imprevisibilidade e irrepetibilidade do processo evolutivo provêm da biologia molecular. As proteínas são codificadas por genes. Por intermédio de complexos processos experimentais, foi demonstrado que mutações aleatórias ocorridas no início da evolução de determinadas proteínas condicionaram a sua forma e função atuais (Shah et al., 2015; Starr et al., 2017). A cada passo da série evolutiva que lhes deu origem havia várias soluções possíveis e não foi produzida por mutação e fixada a melhor solução possível. A componente aleatória da microevolução a nível molecular propaga-se a outras escalas do processo evolutivo. O somatório de vastos eventos aleatórios criou taxa e ecossistemas a priori imprevisíveis. A evolução poderia ter seguido milhares de outros caminhos que por puro acaso não tomou.
De acordo com (K. J. Niklas, 2004), o número de fenótipos possíveis (bem-sucedidos) para um determinado ambiente seletivo aumenta com a complexidade biológica, definida pelo autor como o número de tarefas que um organismo desempenha de modo a crescer, sobreviver e reproduzir-se. Quanto maior a complexidade, maior o número de trade-offs evolutivos em jogo. Portanto, o mesmo nicho ecológico, ou nichos ecológicos similares, podem ser preenchidos com plantas com aspeto (hábito), arquitetura da canópia ou folhas totalmente distintas. Por exemplo, a caducifolia de estação seca, a microfilia (folhas pequenas) e as folhas suculentas são soluções alternativas para a aridez climática (mais exemplos no ponto anterior).
A moderna teoria da evolução explica os mecanismos da evolução, mas é incapaz de a prever, não porque esteja errada, ou porque seja uma teoria menor, simplesmente porque a evolução é impossível de antecipar. Nem todos os fenómenos naturais são modeláveis e previsíveis como o escoamento de um líquido sob pressão num tubo. Consequentemente, a macroevolução é eminentemente uma disciplina histórico-descritiva e um terreno fértil para a epistemologia.